PARAPARESIAS ESPÁSTICAS HEREDITÁRIAS
O que são as PEH
As paraparesias espásticas hereditárias (PEH) são um grupo heterogêneo de doenças genéticas raras, cujas principais manifestações clínicas são fraqueza muscular, espasticidade e hipertonia nos membros inferiores, chamadas de sinais piramidais, que levam a redução progressiva da capacidade de locomoção. Tais alterações decorrem principalmente da degeneração das conexões neuronais da via motora primária, o chamado trato corticoespinhal.
De acordo com a manifestação fenotípica, as PEH podem ser classificadas em formas puras (PEH-P) ou complicadas (PEH-C). As formas puras costumam apresentar-se com sinais piramidais em membros inferiores, podendo incluir também sintomas sensitivos como redução da sensibilidade vibratória e urge/incontinência urinária. Já as formas complicadas além do envolvimento da via piramidal afetam outros sintomas neurológicos, como o comprometimento cognitivo, convulsões, demência, ataxia, disautonomia entre outros.
A classificação genética é baseada no locus/gene, sendo os loci para as PEH designados de SPG – sigla do termo em inglês spastic paraplegia ̶ os quais são numerados conforme a ordem cronológica de suas descrições, cujas formas de herança são: autossômica dominante (AD), autossômica recessiva (AR), ligadas ao X e mitocondriais. Atualmente, há mais de 93 loci, nos quais os genes com herança autossômica dominante mais frequentes no mundo são o SPAST/loci: SPG4; seguido do gene ATL1/loci: SPG3A. Os genes com herança autossômica recessiva mais frequentes são o SPG7 e o SPG11. A idade de início dos sintomas das PEH é muito variável, podendo ocorrer desde a infância precoce até a oitava década de vida.
Dados brasileiros colaborativos colocam a SPG4 ( ) como a forma mais frequente tanto na vida adulta quanto quando o início dos sintomas ocorre na infância, sendo neste último caso, seguida de perto em frequência pela SPG3A ( ). O perfil epidemiológico bem como rendimento diagnóstico de novas estratégias de testes genéticos para o diagnóstico dessas condições no Brasil foi avaliado com mais detalhes no Rio Grande do Sul. Neste estado, localizado no extremo sul do pais, o subtipo com herança autossômica dominante mais comum foi a SPG4, representando 47.3% das famílias, em sequência estava a SPG3A. Já os subtipos com herança autossômica recessiva mais frequentes foram a SPG7, seguido por SPG11, Xantomatose Cerebrotendínea e SPG76, esta última uma forma relativamente incomum em outras populações ( ). Contudo, são necessários estudos mais abrangentes da população brasileira, latino-americana e do Sul global para um melhor conhecimento do perfil clínico, genético e epidemiológico das PEHs, sendo este um dos objetivos iniciais da Rede iAXON-Brazil HSP.
História das PEH
As paraparesias espásticas hereditárias foram inicialmente descritas no final do século XIX nos trabalhos do neurologista alemão Ernst Adolf Gustav Gottfried von Strümpell. Strümpell também foi o primeiro a descrever os marcos patológicos das PEHS em 1886, complementados na sequência, em 1888, por descrições clínicas e anatômicas mais detalhadas do neurologista francês Maurice Lorrain, motivo pelo qual até hoje este grupo de doenças também é conhecido como doença de Strümpell-Lorrain.
Strümpell relatou o caso de dois irmãos com PEH de herança provável autossômica dominante, cujos sintomas se manifestaram aos 37 e 56 anos de idade. Clinicamente, esses pacientes apresentaram uma forma pura de paraparesia espástica. Após a morte de um dos irmãos, estudos neuropatológicos mostraram degeneração do trato corticoespinhal lateral, do fascículo grácil e do trato espinocerebelar.
Fenótipo Clínico: Em 1916, Rhein foi o primeiro em identificar a notável heterogeneidade clínica apresentada por algumas famílias com PEH. Suas observações foram acompanhadas por várias séries de casos descrevendo quadros clínicos, incluindo: degeneração retiniana, demência, sintomas extrapiramidais, deficiência mental, amiotrofia da mão e outras características. Dessa maneira, o termo “paraparesia espástica familiar de Strümpell” foi reservado para famílias que apresentavam apenas paraparesia espástica nas formas puras, sendo mais prevalentes do que as complicadas, e na qual o curso clínico não afetava a expectativa de vida.
Na década de 1980, Anita Harding, professora de neurologia na Universidade de Londres e importante pioneira no campo da neurogenética molecular, publicou uma série de trabalhos inovadores sobre PEH. Em 1981, apresentou a maior investigação sobre PEH pura para a época com 22 famílias estudadas. Esse trabalho consolidou o conhecimento de que os subtipos puros da doença são quase sempre herdados de forma dominante. Também destacou a importância de examinar parentes de primeiro grau que se consideravam assintomáticos. Ela ainda reforçou que a espasticidade é a principal fonte de incapacidade, e não a fraqueza muscular, um aspecto que continua útil para diferenciar PEH de outras mielopatias. A principal contribuição de Harding foi a Classificação das ataxias e paraparesias hereditárias, publicada na revista The Lancet em 1983. Este artigo estabeleceu uma diferenciação precisa entre ataxias e PEH, fornecendo uma base prática para as investigações etiológicas que se seguiriam. A atual classificação clínica das PEH em formas puras e complicadas foi proposta por Harding, enfatizando a variabilidade na progressão da doença, mesmo dentro da mesma família.
Em 2006, Schule, Schols e colaboradores publicaram a primeira escala desenvolvida especificamente para quantificar a gravidade de doença nas PEGs, a escala Spastic Paraplegia Rating Scale (Schule et al, 2006). Esta escala passaria a ser o principal instrumento para o conhecimento da história natural bem como a busca de tratamentos para essas condições. Digno de nota, 10 anos após, em 2016, a escala foi validada para o português brasileiro por pesquisadores da UNICAMP (Servelhere et al., 2016)
Caracterização Estrutural: Neuropatologia e Neuroimagem: Na década de 1980 as descrições clínicas da PEH se expandiram, enquanto, a compreensão patológica da doença já havia iniciado 100 anos antes. Em 1886, Adolf von Strümpell, documentou casos de degeneração do trato corticoespinhal, entendendo a doença como uma axonopatia distal das fibras longas mielinizadas da medula espinhal. Em 1952, Schwarz revisou a literatura patológica e destacou a diferenciação da doença de Strümpell em relação a outras condições como as ataxias cerebelares, mostrando que as lesões afetam inicialmente a medula espinhal e os tratos corticoespinhal e posterior. E em 2004, DeLuca e colegas realizaram o maior estudo patológico examinando quantitativamente a população neuronal de seis pacientes com PEH, identificando redução acentuada na área e densidade axonal do trato corticoespinhal nas regiões inferiores da medula.
Na última década, as técnicas de neuroimagem passaram a ser a principal modalidade para investigar anormalidades estruturais em distúrbios neurológicos. Agosta e colaboradores analisaram múltiplos subtipos de PEH, revelando que as anormalidades microestruturais são difusas. Em 2015, Lindig e Rezende mostraram correlações entre a interrupção dos tratos da substância branca e a gravidade da doença, sugerindo que medições por tensor de difusão podem ser biomarcadores. Além disso, foi demonstrada a ausência de afinamento cortical em subtipos puros de PEH. Para o HSP-SPG11, França e Pan identificaram desestruturação microestrutural da substância branca e perda volumétrica significativa da substância cinza profunda.
Contribuições Brasileiras
Pesquisadores brasileiros fizeram contribuições substanciais no campo das PEHs. Clinicamente, Teive et al. descreveram os primeiros casos de com corpo caloso fino no Brasil em 2001, em um momento em que poucas famílias haviam sido identificadas no mundo, além do Japão. Em 2007, um grupo multinacional de pesquisadores, incluindo a bióloga brasileira Mayana Zatz, identificou variantes patogênicas causadoras da SPG8. Em 2014, França et al. abordaram a epidemiologia molecular da SPG4, confirmando-a como a PEH mais comum no Brasil. Em 2015, Melo et al. descreveram a superexpressão do gene KLC2 como a causa da paraparesia espástica com atrofia óptica e neuropatia periférica.